A lírica profana galego-portuguesa


I. Preliminares

A denominação convencional de poesia trovadoresca galego-portuguesa designa uma manifestação cultural que se desenvolveu ao longo de um século e meio desde o último terço do século XII até meados do século XIV, nos reinos ocidentais peninsulares. Trata-se de um fenómeno cultural que surge e se desenvolve fundamentalmente em âmbitos senhoriais e aristocráticos como divertimento dessa elite social.
É preciso ter em linha de conta que hoje, quase oitocentos anos depois do período de maior esplendor da lírica dos trobadores, se nos apresentam algumas dificuldades de interpretação do seu rico legado: erros inerentes à escrita dos amanuenses, as lacunas e distorções causadas pelas vicissitudes sofridas pelos testemunhos manuscritos através dos séculos, ou a própria língua das cantigas, que contém arcaísmos lexicais, morfológicos e estruturais, são, entre outros, alguns dos fatores que dificultam a sua compreensão.
Existem outras dificuldades de carácter mais subtil. A sociedade e a ideologia feudal que aparece refletida nos textos trovadorescos está muito afastada dos parâmetros ideológicos, sociais e culturais que regem na atualidade o mundo ocidental, fundamentalmente urbano. Podemos falar, igualmente, de um distanciamento estético-conceptual. Para nós, que entendemos a originalidade artística segundo um prisma ainda romântico que prima sobretudo a individualidade e a rutura com o passado, pode ser difícil apreciar uma estética baseada na variação e na modulação a partir de temas e estruturas necessariamente retirados da tradição. Habituados como estamos à cada vez mais vertiginosa sucessão ou convivência de movimentos artísticos e de gostos estéticos, não é fácil acostumarmo-nos à ideia de que uma escola poética possa estar vigente durante séculos.
É ainda indispensável lembrar que as cantigas trovadorescas não foram concebidas para serem lidas e que o público assistia à sua interpretação cantada com acompanhamento de instrumentos musicais. O espetáculo em que se interpretavam as cantigas profanas seria mais parecido a um concerto de música de câmara ou de música popular do que a um livro de poesia destinado a uma leitura privada.


II. Poesia em galego

Visto desde a atualidade, parece lógico que nas cortes reais portuguesas de Afonso III e do seu filho D. Dinis (segunda metade do século XIII e primeiro quarto do XIV) a língua poética dos trovadores fosse o romance ocidental que surgira no território da antiga Gallaecia, convencionalmente denominado galego-português. Poderia, porém, resultar surpreendente que, nessa mesma época, o galego fosse a língua poética das cortes de Sevilha e de Toledo do rei Afonso X o Sábio, o maior mecenas da escola trovadoresca na sua fase de esplendor, ele mesmo poeta profano em galego e promotor das Cantigas de Santa Maria, compostas também nessa língua.
Quando a influência da poesia trovadoresca occitana se fez notar nas cortes ocidentais peninsulares foi adotando o galego como língua veicular. Uma razão geográfico-política é que a época em que teve lugar o surgimento da nova poética trovadoresca nos reinos ocidentais peninsulares nos situa nas três últimas décadas do século XII e nos primeiros anos do século XIII. O reino da Galiza e de León e o reino de Castela são ainda entidades independentes e mesmo contendentes. A alta nobreza galega, com os Traba à cabeça, assim como o arcebispado compostelano, tiveram e tinham ainda um peso decisivo nas grandes questões relativas à monarquia. A mostra mais significativa foi a coroação como rei de Galiza, na Catedral de Santiago, do seu candidato Afonso VII, face às aspirações do rei aragonês Afonso o Batalhador, apoiado pela nobreza castelhana. A influência política dos Traba continuará durante os reinados de Fernando II e de Afonso VIII da Galiza e León (IX de Castela), ambos criados e educados também por membros desta família1.
A língua da corte do Reino da Galiza, do Reino de León e posteriormente do Reino da Galiza e León não era a variante romance com origem no centro peninsular castelhano, mas o conjunto de variantes geográficas romances ocidentais que seriam totalmente permeáveis em todo o território da antiga Gallaecia. Parece lógico, portanto, supor que a língua das manifestações literárias com que se deleitavam os habitantes dessas cortes fosse a mesma que utilizavam na sua vida quotidiana, isto é, o romance surgido nesse território ocidental. O facto de Compostela ser a cidade privilegiada como sede da cúria civil durante os reinados de Fernando II e de Afonso VIII (IX de Castela) ajudaria também a explicar que as primeiras manifestações líricas se expressassem em galego e que nesta língua se desenvolvesse a sua posterior evolução2.
Outro argumento, de carácter literário e que vai no mesmo sentido, é o facto de nesses territórios de retaguarda, seguros desde o ponto de vista militar, existir já antes da chegada da nova poética trovadoresca uma escola poético-musical autóctone cuja produção se regeria por pautas temáticas e formais muito semelhantes às que se podem entender nas cantigas de amigo paralelísticas que chegaram aos nossos dias. Giuseppe Tavani (2004) fala de uma “Provenza Hispánica” e defende a existência no século XII em torno à cidade de Compostela de uma escola de poetas galegos com formação retórica que cultivaria este género de criação própria. Não devemos esquecer que as primeiras manifestações da lírica em romance surgem num contexto cultural em que a literatura médio-latina na Galiza produz obras tão significativas como o Codex Calixtinus ou a Historia Compostellana, enquanto no campo da arte se termina o Pórtico da Gloria (1188) e se espalha o românico.
As condições de produção, divulgação e mecenato por onde fluía essa vigorosa lírica pré-trovadoresca são idóneas para que por esse mesmo leito fluísse também a nova poética trovadoresca cortês forânea (Brea 1994; Tavani 2004). Uma mostra do prestigio que a nossa escola de poesia autóctone pré-trovadoresca tinha já forjado nesse momento é o facto de que o trovador occitano Raimbaut de Vaqueiras utilizasse o galego, juntamente com outras línguas com prestigiosa tradição literária, como o francês, o occitano ou o italiano, numa composição plurilingue  datada em torno a 1200 e, portanto, cronologicamente contemporânea das mais antigas cantigas transmitidas pelos grandes cancioneiros galego-portugueses.
No ano de 1230 os reinos da Galiza e León e o de Castela uniram-se definitivamente numa mesma coroa e, à medida que os territórios dos reinos cristãos se iam expandindo em direção ao sul peninsular, também a corte e o aparelho administrativo se foram deslocando para o centro e interior da Península. Simultaneamente, a Galiza perde peso político e económico.
Nas primeiras décadas do século XIII, até 1240, as cortes senhoriais galegas e do norte de Portugal, com os Traba e os Sousa, respetivamente, à cabeça, foram  os centros de mecenato do movimento trovadoresco. Vários dos seus membros foram  trovadores e, sobretudo, acolheram nos seus séquitos numerosos autores que formavam parte da nobreza secundária. É neste período que se definem os tópicos e as fórmulas que regerão o género da cantiga d’amor. A década de quarenta foi fundamental para o relacionamento de um número importante de trovadores e jograis no sul peninsular, pelas guerras de expansão promovidas pelo Reino de Castela.
Com a subida de Afonso III ao trono de Portugal (1248) e de Afonso X ao de Castela (1252), ambas as cortes se convertem nos grandes centros dinamizadores do movimento trovadoresco. Nos círculos áulicos lusitanos, onde continua o predomínio do género da cantiga d’amor, os autores são maioritariamente portugueses e membros da aristocracia. Na corte castelhana de Afonso X, pelo contrario, existe uma notável variedade na procedência geográfica dos trovadores (portugueses e galegos, leoneses, castelhanos, italianos, provençais), assim como na origem social (o próprio rei, aristocratas, nobreza secundária, clérigos, jograis). Tanto na sua corte como na do seu filho Sancho IV a cantiga d’amor perde peso específico e é relegada pelo auge das cantigas d’escarnho e mal dizer, que tratam desde o prisma satírico todo tipo de temas, desde os relativos às experiencias pessoais da vida quotidiana aos acontecimentos políticos e militares mais relevantes.
Na sua última fase a manifestação cultural trovadoresca retrai-se geograficamente ao território português. Cronologicamente vai desde ca. 1300 a 1350, ainda que, após a morte de D. Dinis, em 1325, a atividade poética se reduz drasticamente. O último reduto será a corte do seu filho bastardo, dom Pedro de Barcelos, em que para além do próprio conde só se regista a atividade de um trovador e de um jogral, sendo também maioritárias as cantigas d’escarnho. O legado mais importante do Conde D. Pedro tem a ver com o seu papel como compilador da produção poética da escola trovadoresca galego-portuguesa, dado que a maior parte das cantigas que chegaram a nós procede de cópias realizadas a partir de um cancioneiro que mandou compilar em meados do século XIV e que costuma ser identificado com Livro das Cantigas citado no seu testamento e destinado ao rei Afonso XI de Castela.


III. A poesia profana. Géneros

A maior parte da produção poética profana da escola trovadoresca galego-portuguesa adscreve-se aos três géneros mais conhecidos: as cantigas de amor, as cantigas de amigo e as cantigas de escárnio e maldizer: os dois primeiros tratam temáticas amorosas, enquanto que o último tem intenção satírica e burlesca. De cada um deles conservamos várias centenas de cantigas e todos tinham, em principio, uma função fundamentalmente lúdica (veja-se Tavani 1986: 83-239). Nos primeiros fólios do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Portugal (B) chegou-nos uma Arte de trobar muito fragmentária onde se incluem breves capítulos sobre os géneros poéticos. A distinção parcial que aí se dá entre cantigas de amor e cantigas de amigo, sendo ambos os géneros de temática amorosa, radica exclusivamente na voz poética, que é masculina nas de amor e feminina nas de amigo.

As cantigas de amor

As cantigas de amor constituem uma modalidade poética da escola galego-portuguesa que se enquadra no que a crítica denomina ‘canto cortês’3. Xurdido em e para o âmbito aristocrático, o canto cortês vertebra-se em torno ao que se conhece como a metáfora feudal, que consiste na interpretação da relação amorosa como um transunto do vínculo recíproco que se estabelecia entre um vassalo e o seu senhor feudal. Esta modalidade poética da canção cortês surgiu e triunfou inicialmente nas cortes senhoriais occitanas nos inícios do século XII, e, com posterioridade, noutras cortes europeias de França, Alemanha, Itália e da Península Ibérica, onde havia gérmenes poéticos autóctones sobre quais se afiançaria esta nova poética.
Talvez o traço mais definitório das cantigas de amor é o facto de o sentimento veiculado não ser recíproco: ao contrario do senhor que se comprometia a amparar o vassalo e a corresponder-lhe (fazer ben) pelo serviço prestado, a dama pretendida de amores, a senhor, não faz ben ao poeta namorado que a serve, não corresponde, não o aceita como seu vassalo. Isto é causa de um imenso sofrimento (coita) que o levará sem remissão à morte –fingida, poética–, em evidente contraste com o gozo da poesia occitana (joi), em que a correspondência amorosa por parte da dama era uma variante relativamente frequente. Trata-se, além disso, de um amor à primeira vista, que entra pelos olhos desde o momento em que se contempla a formosura da mulher, seguindo o topos clássico ovidiano muito difundido através de Andrea Capellanus e do seu De amore, que constitui o ‘tratado’ por excelência desta poesia amorosa. Ver = amar = sofrer/morrer: eis o esquema mais básico que é comum à imensa maioria das cantigas de amor, que tratam em diferentes combinações, doses e distribuições, uma série de temas gerais de uso obrigatório e sempre desde uma perspetiva hiperbólica que os magnifica: trata-se de um amor forçado derivado da primeira visão de uma mulher de formosura inefável; um amor impossível não correspondido, guardado em segredo mesmo à própria dama que o desencadeia, que a par do afastamento e da impossibilidade de ver a amada e de lhe poder falar é causa de um imenso sofrimento, a coita, que culmina na morte. O paradoxo, concretamente a ideia do bem como origem do mal, é outra das figuras recorrentes nas cantigas de amor.
A poética medieval, e em particular a das cantigas de amor, desenvolve-se em dois sentidos. Ao usar os temas e motivos obrigados pela tradição, todos os trovadores contribuem para o fortalecimento do paradigma, de modo a podermos afirmar que a maioria das seis centenas de cantigas de amor constituem um macrotexto elaborado entre todos os autores que cultivaram este género e disto resulta um isomorfismo genérico (Tavani 1986: 96-104) que, numa leitura superficial, poderia dar lugar a uma perceção de monotonia. Mas, por outra parte, a originalidade e a individualidade poética procurava-se em maior ou menor medida tratando com variações e modulações de matiz os temas obrigados pela tradição (Zumthor 1972: 79-82). O trovador de Pontevedra Paai Gomez Charinho, como exemplo, trata de forma muito pessoal o motivo da coita de amor ao estabelecer uma comparação entre esta e os sofrimentos causados pelo mar, a coita do mar que ele conhecia pela sua condição de almirante4.

As cantigas de amigo

As temáticas gerais das cantigas de amigo5 centram-se no amor (correspondido, mas nem sempre), nos obstáculos a esse amor (a separação, a proibição), nos múltiplos sentimentos derivados de um encontro amoroso acordado, já gozado ou frustrado: a alegria e expectativa originadas pela próxima vinda do amado; a dúvida, o temor ou a ira ante a sua demora ou não comparecência; a felicidade do encontro; os ciúmes; a infidelidade temida; o medo à rutura; mais também o desejo erótico e a consciência feminina da própria sensualidade.
A crítica costuma distinguir duas modalidades de cantigas de amigo. Por um lado, as de estilo cortês, protagonizadas por uma mulher que sofre coita de amor, constituem o “reverso do espello das cantigas de amor” (Tavani 1986: 139) por tratarem temáticas e utilizarem estilemas próprios daquele género. Por outro, as cantigas de amigo de estilo popularizante seriam exemplo de uma poesia áulica pré-trovadoresca, e caracterizam-se pelo emprego de estruturas estróficas com paralelismo literal, vinculado ao procedimento do leixa-pren para encadear os motivos e as estrofes, assim como pela reelaboração culta de alguns tópicos extraídos da tradição oral popular.
Nalgumas destas cantigas regista-se o uso de um simbolismo de hermenêutica complexa já baseado sobretudo em certos elementos da natureza (a fonte, o cervo etc.), cuja conotação simbólica associada à potencia fecundadora e geradora de vida se remonta a tempos pré-históricos da humanidade. Teriam de passar séculos para que a Igreja conseguisse erradicar esta vivência panteísta e pagã da natureza, muito viva na cultura popular medieval. Na maior parte dos casos conseguiu apenas cristianizar os rituais e os lugares dos cultos pagãos. Isto reflete-se numa modalidade específica de cantigas de amigo, as chamadas cantigas de romaria ou cantigas de santuário, em que a peregrinação não é mais do que uma desculpa para um encontro amoroso e que provavelmente tivessem uma função propagandística dos próprios santuários citados expressamente nos textos. Clara prova disto são algumas cantigas dos jograis da ria de Vigo: a conhecida cantiga Sedia-m’eu na ermida de San Simion de Meendinho, as cantigas Eno sagrado, em Vigo e Mia irmana fremosa, treides comigo de Martin Codax, ou as cantigas de Joan de Cangas onde se identifica explicitamente o santuário como o lugar idóneo para que os dois namorados possam aver lezer.

As cantigas de escárnio e maldizer

Na citada Arte de tronar do cancioneiro B estabelece-se uma distinção teórica entre as cantigas de escárnio e as cantigas de maldizer6. Tendo ambos os géneros a intenção comum de “dizer mal de alguém”, as cantigas de escárnio seriam as que usam “palavras encobertas” com “dois entendimentos”, isto é, que se baseiam nos variados procedimentos da aequivocatio para jogar com duplos sentidos. Pelo contrário, as cantigas de maldizer utilizariam palavras diretas, sem duplos sentidos, para a burla e para a sátira. Porém, esta rígida distinção teórica não se cumpre na realidade dos cancioneiros, em que abundam cantigas que combinam a linguagem referencial com sentidos velados, com numerosas cantigas qualificadas nas rubricas como d’escarnh’e de maldizer. Na poética deste género, a ironia e o sarcasmo atingem por vezes cotas magistrais.
Conforme a intencionalidade da sátira e as temáticas tratadas, as cantigas de escárnio e maldizer costumam ser agrupadas em quatro modalidades: sátira política (contra a traição ao senhor legítimo; a ingerência ativa da hierarquia eclesiástica nos assuntos civis; a extrema covardia de alguns nobres e cavaleiros na batalha, ou as más práticas dos privados do rei, entre outros temas); sátira social, pessoal e de costumes (contra a mesquinhez e avareza ridícula dos ricos-homens; contra a escassez ou avareza dos fidalgos; contra a renúncia a defender a linhagem para vingar um rapto; sobre a sexualidade vista desde os prismas deformantes do excesso, da carência ou do desvio, entre outros); sátira literária (ataques entre trovadores ou contra os jograis por não saberem medir os versos, por cantarem ou tocarem mal, por exemplo) e sátira moral (crítica geral contra a perda dos velhos valores e a decadência do mundo presente).
Na maioria das cantigas de escárnio prima a intenção lúdica, mas em muitos casos serviam também como espelho deformante de condutas reprováveis em que as pessoas reais não gostariam de se verem refletidas. As sátiras políticas foram utilizadas como verdadeiras armas para desprestigiar o inimigo ou para ridiculizar certos comportamentos impróprios ou desleais.

Outros géneros poéticos

Além destes três grandes géneros, há algumas cantigas que pela sua temática ou pela sua forma remetem para outras modalidades poéticas mais cultivadas noutras literaturas europeias medievais. Acontece, porém, que na maior parte dos casos essas composições são adaptadas às convenções formais de algum dos géneros mais representados. Assim ocorre cos cinco lais que tratam de temática relativa à matéria da Bretanha, que estão construídos nos moldes da cantiga de amor, três deles, e dois nos das cantigas de amigo. Outro tanto sucede, por exemplo, com Quisera vosco falar de grado de D. Dinis, ou com Sedia la fremosa seu sirgo torcendo de Estevan Coelho, que sem deixar de ser uma a primeira canção de malcasada, e a segunda uma chanson de toile –a moça está tecendo ou fiando–, são muitas vezes cantigas de amigo e assim aparecem recolhidas nos cancioneiros. 
Existem outras modalidades poéticas cultivadas noutras tradições literárias medievais que têm também uma pequena representação na lírica galego-portuguesa. É o caso da pastorela (em que um cavaleiro de caminho se encontra com uma pastora que é por ele requerida de amores), o pranto (composição com motivo da morte e exéquias de um personagem muito relevante), a cantiga encomiástica (em louvor de um rei por alguma das suas conquistas) ou o descordo (cuja irregularidade métrica intencionada expressa o desassossego da alma do protagonista).
Na Arte de trobar de B há um capítulo à tençon, onde se define como uma modalidade poética em que debatem dois trovadores, indicando que a temática da discussão pode ser de amor, de amigo ou de escárnio. Na realidade dos cancioneiros, a imensa maioria das tençons versam sobre assuntos escarninhos e aparecem recolhidas na secção correspondente a este género. Há, porém, composições em que dois trovadores debatem sobre questões amorosas e que se podem considerar adaptações da modalidade poética occitana do partimen ou joc partit.
Na Arte de trovar de B descreve-se ainda a cantiga de seguir. Trata-se, mais do que de um género, de um procedimento compositivo que consiste precisamente na reutilização de elementos textuais, melódicos ou estruturais de uma composição alheia que se toma como ponto de partida7.


IV. A poesia profana. Aspetos formais

Desde o ponto de vista formal, a poesia trovadoresca caracteriza-se pela isometria, isto é, pela regularidade métrica. As estrofes ou cobras podem ser de refrão, se tiverem estribilho, ou de mestria, se carecerem dele.
A variedade de usos de esquemas métrico-rimáticos utilizados no conjunto do corpus trovadoresco é notável8: de um total de 260 combinações registradas há muitas que foram usadas numa única cantiga, enquanto outros esquemas foram utilizados em dezenas e inclusivamente em mais de cem cantigas. O habitual é que numa composição se utilize em todas as estrofes o mesmo padrão métrico-rimático.
Uma particularidade da poética da lírica dos trovadores galego-portugueses é a importância dada aos artifícios de repetição de palavras relevantes para o conteúdo. Alguns destes procedimentos, como o dobre e o mozdobre, descritos na Arte de trobar, exigiam que a repetição se desse duas ou mais vezes por estrofe, em todas as estrofes e no mesmo ponto ou altura estrutural. Mas a rigidez literal desta norma poucas vezes se cumpre, e o habitual é que os procedimentos de repetição funcionem mais pela sua intensidade do que pela regularidade rígida.
Existe uma serie de procedimentos de ligação interestrófica, tais como iniciar uma estrofe utilizando no primeiro verso a rima do último verso da estrofe anterior (cobras capcaudadas), ou utilizar no primeiro verso de uma estrofe uma palavra do último verso da estrofe anterior (cobras capfinidas) etc. Estes mecanismos facilitavam a memorização da ordem de sucessão das estrofes, sobretudo naqueles casos frequentes em que os mesmos conceitos se repetem com leves variações em todas as estrofes.


V. Trovadores e jograis

Entre os agentes primários da manifestação cultural trovadoresca devemos salientar as figuras do trovador e do jogral (veja-se Oliveira 1995 e 2001). O trovador, de condição nobre –há desde reis a simples cavaleiros– é o compositor do texto e da melodia das cantigas. Em maior ou menor grau, os trovadores tinham uma educação baseada no sistema das artes liberais (Trivium e Quadrivium) vigente na época e que incluíam, entre outras disciplinas, a gramática, a dialética, a retórica e a música. Nalgumas cantigas percebe-se também a influência da pedagogia escolástica tanto na formulação conflituosa dos temas como no desenvolvimento da argumentação. Em certa medida, pois, o domínio da arte de trovar também era uma marca de classe.
Não deve ser esquecido por outra parte que o trovador, como membro da nobreza, era acima de tudo um guerreiro, um miles. Muitos participaram ativamente nos múltiplos conflitos bélicos da época, tanto entre cristãos como, fundamentalmente, nas cruentas guerras contra os muçulmanos. 
O jogral, de condição plebeia, interpretava as composições dos trovadores acompanhado por algum instrumento (Lorenzo Gradín 1995). Recebia em dinheiro ou em espécies (tecidos, alimento) e podia estar exclusivamente a soldo de um trovador. Foram, porém, muito os jograis que se dedicaram também à composição sobretudo de cantigas de amigo. Alguns jograis compuseram também cantigas de amor, género aristocrático que os trovadores consideravam como próprio, o que deu lugar a polémicas que se refletem em  não poucas cantigas de escárnio, sendo paradigmático o caso de Joan Garcia de Guilhade e do jogral Lourenço: o primeiro ataca o segundo por querer ser compositor (trobador), quando nem sequer sabe tocar o seu instrumento de  jogral (um citolón) ameaçando partir-lho na cabeça.
Finalmente, há um número reduzido de compositores de poesia profana pertencentes ao estamento clerical e que, talvez por essa razão, aparecem agrupados nos cancioneiros.
Merece ser salientado o ativo mecenato promovido por alguns grandes senhores e reis, verdadeiros agentes dinamizadores do trovadorismo, entre os quais se destaca a figura de Afonso X já desde antes do seu acesso ao trono em 1252. Tal mecenato permitiu a confluência de trovadores de diferentes procedências e favoreceu o dinamismo das relações entre eles. Fruto destas relações literárias  são os vários ciclos de cantigas em que diversos autores tratam uma mesma temática ou personagem (o ciclo das amas, o de Maria Balteira, o de Fernan Diaz etc.), assim como os frequentes casos de complementaridade discursiva entre composições de dois ou mais autores que ‘dialogam’ entre si, até ao ponto de às vezes uma das cantigas não poder ser entendida sem a outra.


VI. A tradição manuscrita da poesia profana. Testemunhos e constituição

Apesar de a tradição manuscrita da poesia profana galego-portuguesa ser unitária e de os testemunhos conservados serem escassos, tanto para a caracterização cabal destes, como em relação ao processo de constituição da tradição, há ainda questões relevantes por resolver.

Testemunhos

A poesia profana galego-portuguesa foi-nos transmitida por três cancioneiros coletivos, além dos vários fragmentos menores.
O Cancioneiro da Ajuda (A) é um códice em pergaminho elaborado entre finais do século XIII e princípios do século XIV, quando a escola trovadoresca ainda estava vigente, que contém 310 cantigas de amor. Conserva-se na biblioteca do Palácio da Ajuda em Lisboa, sem cota, encadernado conjuntamente com um Livro de linhagens do Conde D. Pedro. De história ou fortuna complexas, está constituído por 88 fólios. Várias circunstâncias indicam que se trata de um volume inacabado, para além de estar afetado por diferentes lacunas materiais: contém numerosas iluminuras em diferente estado de elaboração, algumas finalizadas, outras simplesmente esboçadas e muitas sem começar; reserva espaço para a notação musical, mas nem sequer se deu início à cópia; carece das rubricas atributivas da autoria e termina bruscamente a meio de um verso e a metade de coluna.
O Cancioneiro da Biblioteca Nacional (B), custodiado pela Biblioteca Nacional de Portugal com a cota COD 10991, também conhecido como Cancioneiro Colocci-Brancuti, está constituído no seu estado atual por 355 folios em papel. É o cancioneiro que transmitiu um maior número de cantigas, cerca de 1560. Foi mandado copiar em Itália, na cúria papal, pelo humanista Angelo Colocci a princípios do século XVI e na sua elaboração intervieram seis copistas. Considera-se que foi um manuscrito de trabalho para o uso pessoal de Colocci, pois ele mesmo introduziu à mão a numeração das cantigas assim como numerosas rubricas atributivas e explicativas e outras anotações de tipo métrico, linguístico ou literário, aquando da cópia, nas páginas iniciais, de parte da já citada Arte de Trobar.
O Cancioneiro da Vaticana (V), conserva-se na Biblioteca que lhe dá nome, em Roma, com a cota Vat. Lat. 4803. É um livro em papel que contém cerca de 1200 cantigas copiadas por uma única mão. Está estreitamente relacionado com B, e, apesar das divergências, o mais provável é que ambos os cancioneiros fossem copiados em simultâneo sob a supervisão de Angelo Colocci, a partir de um mesmo exemplar dividido em cadernos (cópia alla pecia), circunstância que explicaria em parte as lacunas que o afetam, à margem da grande lacuna inicial (acefalia), as sinalada oportunamente por uma nota de Colocci. 
O Cancioneiro da Bancroft Libray (K) é um descriptus de V, uma cópia bastante fiel –ainda que incremente erros próprios aos do exemplar–, realizada entre finais do século XVI e inícios do século XVII em Roma. Descoberto em Madrid em 1857 por Francisco A. de Varnhagen, na biblioteca “de um grande de Hespanha”, esteve desaparecido até que reapareceu em 1983 entre os volumes adquiridos pela Bancroft Libray da Universidade da Califórnia (Berkeley), onde atualmente se conserva com a cota BANC MS UCB 143 v. 131. 
Quanto aos fragmentos parciais, referiremos em primeiro lugar, devido à sua capital importância, os pergaminhos Vindel e Sharrer.
O Pergaminho Vindel (N) é um bifólio de pergaminho, contemporâneo da atividade trovadoresca, que constitui um testemunho importantíssimo no processo de transmissão da nossa lírica profana medieval. Desde o seu descobrimento em princípios do século XX era o único manuscrito conservado que para além do texto das composições –sete cantigas de amigo do jogral Martin Codax– transmitia também a melodia pautada de seis delas. Conserva-se na Morgan Library & Museum, em Nova Iork, com a cota M 979.
O Pergaminho Sharrer (T), descoberto em 1990 na Torre do Tombo de Lisboa, transmite parcialmente, devido ao seu estado de deterioração, o texto e a melodia de sete cantigas de amor do rei D. Dinis. Pela primeira vez os musicólogos tinham material para poderem confrontar as cantigas de amor e as de amigo também desde o ponto de vista da música. Conserva-se na Torre do Tombo, Lisboa (Fragmentos. Caixa 20, nº 2 [Casa Forte]).
Os Lais de Bretanha (L), testemunho constituído por três folios inseridos num volume miscelânea, com a cota Vat. Lat. 7882 da Biblioteca Vaticana, contém os textos dos cinco lais de Bretanha recolhidos também no inicio de B.
As siglas M e P aludem a duas versões de uma tenção entre Afonso Sanchez e Vasco Martins de Resende conservadas, respetivamente, na Biblioteca Nacional de Madrid (f. 25rº do volume miscelânea MS 9249) e na Biblioteca Municipal do Porto (MS 419). Da primeira há uma cópia na mesma Biblioteca Nacional (fol. 72r do volume miscelânea MSS 3267).
Além dos manuscritos citados conserva-se também a Tavola Colocciana (C), catálogo de autores elaborado por Angelo Colocci e que corresponde, muito provavelmente, ao índice de B no momento da sua cópia. Hoje está na Biblioteca Vaticana num volume miscelânea com a cota Vat. Lat. 3217.

Constituição da tradição

O primeiro grau no processo de tradição manuscrita9 estaria constituído hipoteticamente pelos rolos ou folhas soltas que continham um número reduzido de composições de um único autor. A partir da cópia de várias dessas folhas soltas ou dos rolos com composições de um só autor elaboraram-se os cancioneiros individuais. Copiando e organizando vários desses cancioneiros individuais foram elaborados diversos cancioneiros coletivos, de maior ou menor envergadura. Da existência de uns e outros (como um cancioneiro de cavaleiros, um cancioneiro de jograis galegos ou um cancioneiro de Joan Airas de Santiago, entre outros hoje perdidos) ainda se observam vestígios nos cancioneiros que chegaram a nós.
A tradição manuscrita da poesia profana galego-portuguesa remonta-se em última instância a um cancioneiro coletivo hoje perdido, que constituiria o arquétipo (ω) de toda a tradição. Este cancioneiro continha as cantigas de trovadores nobres, ordenadas cronologicamente e agrupadas por géneros. É provável que o Cancioneiro da Ajuda, que só contém cantigas de amor, se aproxime bastante –com alguns acrescentos– do que deve ter sido ser a primeira secção desse cancioneiro primigénio perdido. Com posterioridade, quando já o fenómeno trovadoresco se encontrava praticamente extinto, por volta de 1350, o conde D. Pedro de Barcelos promoveu uma exaustiva recolha de cantigas, a que Oliveira denomina “Compilação Geral” e que provavelmente seria o Livro das cantigas de que se fala no testamento do conde. Esta compilação corresponderia ao subarquétipo α, proposto por Giuseppe Tavani (veja-se infra). A análise interna dos cancioneiros conservados permite deduzir que esta compilação geral constitui um segundo nível no processo de tradição manuscrita. Recolhe o material do arquétipo, e acrescentam-se novos materiais copiados de outros cancioneiros individuais e coletivos, mas já sem seguir os critérios sociológico, cronológico e de divisão por géneros, que guiaram as primeiras recolhas. Quase dois séculos depois, por volta de 1525, uma cópia desta recolha, ou talvez o cancioneiro original, hoje perdido, foi levado a Roma num estado já lacunoso e dele se fizeram as duas cópias, apógrafos B e V, que chegaram até nós.
No seguinte esquema (stemma codicum), que é uma simplificação de outro mais complexo estabelecido por Tavani (1967b), representa-se a filiação entre os diferentes cancioneiros da tradição manuscrita da lírica profana galego-portuguesa.

  1. ^

    Sobre o importante papel político da nobreza galega neste período, veja-se especialmente López Carreira (2005).

  2. ^

    Estudos recentes sobre a documentação relativa aos autores mais antigos dos cancioneiros incidem em destacar certas circunstâncias de tipo geográfico-político, sociais e familiares que se conjugam para situar as primeiras manifestações da lírica galego-portuguesa na cúria galaico-leonesa destes dois reis, cuja vocação galaica nos âmbitos político e cultural seria resultado, entre outras razões, do influxo da casa dos Traba sobre a coroa. As relações de parentesco estabelecidas entre esta família condal com outras famílias nobres catalano-provençais seriam a principal via de difusão desta nova poética num primeiro momento no Ocidente peninsular. Acrescente-se, por outro lado, que para a maior parte dos trovadores mais antigos se pode encontrar e seguir algum vínculo familiar ou social com os Traba. Veja-se Souto Cabo (2012).

  3. ^

    Para um estudo relativo a poéticas individuais percetíveis sobre a voz da tradição veja-se Arbor Aldea (2009).

  4. ^

    Uma monografia específica sobre este género pode ver-se em Brea & Pilar Lorenzo Gradín (1998). Veja-se também Tavani (1986: 135-171) e Lorenzo Gradín (1992).

  5. ^

    Um estudo específico sobre as cantigas satíricas pode ver-se em Lanciani & Tavani (1995); também, Tavani (1986: 171-198).

  6. ^

    Sobre estes géneros pouco representados veja-se Tavani (1986: 198-226).

  7. ^

    O grande trabalho de base sobre esta questão, apesar das necessárias pontualizações posteriores, encontra-se ainda en Tavani (1967a).

  8. ^

    A questão da constitução da tradição manuscrita é extremamente complexa e deu lugar a uma ingente bibliografía. Um estudo relevante da mesma pode ver-se em Oliveira (1994); e um compêndio rigoroso da questão em Gonçalves (1993). Em ambos os casos se remete aos estudos prévios mais importantes sobre esta questão.